O imaginário no teatro popular: um contraponto entre Gil Vicente e Ariano Suassuna

 

SILVA, R. D. S. M.

Orientadora: TURCHI, M.Z.

Faculdade de Letras. rosangeladvn.com@uol.com.br, zaira@letras.ufg.br

 

Palavras-chave: IMAGINÁRIO. TEATRO.MEDIEVAL.MODERNO

 

 

 

 Acreditamos que a Literatura, em suas múltiplas formas, constitui-se em um espaço estético privilegiado de confluências das imagens culturais, míticas, cujas raízes dão sustentação a um sistema simbólico dinâmico, universal, que estrutura o imaginário coletivo. Impera-se, com a evolução histórico-cultural humana, uma complexa e variada estruturação dessas imagens, que se enfeixam em novas constelações de acordo com o tempo e o povo que delas se apropriam. Por isso, cremos na relevância dos estudos críticos do imaginário que fazem, sobretudo, da arte literária objeto de análise, tendo em vista que, na mais alta torre, o artista tece a imagem primordial do ser do homem, de seu mundo, de sua História, de sua trajetória na luta incessante contra a Morte, com os fios da aurora de sua época.  

                                     O dramaturgo Ariano Suassuna é um tecelão do tempo contemporâneo que entrelaça em sua lançadeira os matizes de um tempo remoto, cristalizado em nossa mente, do qual o teatrólogo medieval Gil Vicente fez parte e deixou-nos o seu legado. Nesse sentido, fizemos nossa dissertação com o objetivo precípuo de analisar comparativamente  duas peças teatrais: uma medieva, pertencente à Trilogia das barcas, O Auto da barca do Inferno, do autor português Gil Vicente, a outra moderna: O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, tendo como referencial a (re) contextualização mítica, por meio do auto, sob a perspectiva crítica do imaginário.

Nossa investigação pauta-se na análise do auto, compreendendo-o como uma forma teatral de revitalização do mito, cuja presença concretiza-se na base do simbolismo. A idéia central do nosso trabalho evidencia a presença do mito nos respectivos autos; demonstrando como realiza-se a atualização do feixe de constelações de imagens medievais, no imaginário do homem pós-moderno,  pontuando como esse processo de remitologização ocorre na literatura brasileira moderna, em especial, no teatro.   

Apesar da distância dos séculos que separa consideravelmente esses dramaturgos e respectivas peças, reconhecemos que Ariano Suassuna serve-se da tradição literária ibérica para criar suas peças ao intitulá-las de auto e retomar, a seu estilo, traços peculiares do teatro medieval vicentino.

A esse respeito, nossa pesquisa busca compreender de que modo o auto de Gil Vicente, como gênero teatral, é retomado na obra de Ariano Suassuna, ou seja, como as obras Auto da Barca do Inferno e Auto da Compadecida interpenetram-se. Nesse aspecto, o estudo da literatura de cordel e da ironia revela o modo como a cultura popular nordestina, histórias de cordel, intertextualmente, trazem marcas do imaginário medieval, o que aproxima o Auto da Barca do Inferno do Auto da Compadecida.

 Outro ponto norteador de nosso trabalho, refere-se à análise do processo de remitologização que acontece nas peças quer pelos motivos arquetípicos, quer pelas imagens simbólicas. Na busca incessante de vencer a morte, a injustiça, a desigualdade social, a tirania, a prepotência dos poderosos, a hipocrisia, o mito surge em sua força primordial. Para tanto, há uma abordagem de temas míticos nas peças aludidas, entre os quais: vida, morte, purgatório, inferno, paraíso.

Para melhor compreensão dessa abordagem, esboçamos a origem do auto no teatro medieval, apresentando o seu fundador Gil Vicente, e assinalamos esse tipo de peça teatral como o arcabouço metafórico da sátira mordaz, do humor irreverente de um homem que se antecipou a sua época pelo teor de suas críticas sociais, evidenciando a dimensão histórica, política, cultural da sociedade portuguesa humanista, sob a caricatura de tipos humanos, sociais, ao mesmo tempo, que ele se mantém preso ao pensamento teocêntrico cristão medieval, embora os clérigos sejam alvo constante de suas críticas.

Numa perspectiva comparativista, procuramos situar a obra vicentina no contexto histórico e literário do mundo medieval, como também a obra de Arinano Suassuna. Preferimos a análise em separado dos respectivos autos, para, em seguida, fazermos as considerações, as confluências estéticas das obras, tendo em vista que o nosso objetivo precípuo é uma reflexão teórico-crítica-comparativa, buscando demonstrar que o imaginário do homem moderno é uma reconstrução simbólica do psiquismo humano, moldada a nosso tempo.

Nesse sentido, percebemos que há um antagonismo aproximativo entre a peça vicentina e a  sussuaniana, uma vez que nelas entrevemos a dinâmica do imaginário, das verdades míticas, universais, tais como a vida e a morte, a queda e a redenção, mas que se contrapõem pelo dogmatismo intorelante representado no Auto da Barca do Inferno, em que prevalece a condenação  das almas e pela boa nova, no Auto da Compadecida, encarnada na figura de Maria, que opera o Milagre da salvação de todos os pobres, estabelecendo o Reino da Justiça  prometido por Jesus Cristo.          

                                    Ao final de nosso estudo, procuramos demonstrar que há no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, uma recontextualização histórico-cultural, do homem em relação à sua Fé religiosa, cujo potencial revolucionário respalda-se no profetismo de uma comunidade cristã esperançosa, do acolhimento ao outro, da possibilidade de uma reconstrução social, centrada em novos valores éticos, morais, religiosos e culturais, ao que nos parece quase impossível na visão de Gil Vicente que demonstra uma resignação aos dogmas impostos de sua época.  Assim,  o teatro popular de Ariano Suassuna redimensiona a ideologia cristã medieval do fenômeno religioso para estética moderna, como fonte de crítica social, em que se dessacraliza a imagem do  Tirano onipotente, implacável, com a fraqueza humana.

                                      O ímpeto criador extrovertido, bem humorado, de Ariano Suassuna faz-nos rir a valer, no entanto, reafirma, de forma satírica, uma verdade mítica universal, de que somos humanos, frágeis diante das intempéries do tempo, aguardando a nossa sentença Final: a morte, mas que podemos reconstruir a nossa própria história, mudar o curso de nosso destino, por conseguinte, alterar as relações humanas e sociais. Portanto, o Auto da Compadecida, à luz da modernidade, irrompe como arte engajada, uma crítica contudente  àqueles que se valem da Fé, do poder instituído para manter a desigualdade social, mas que são rechaçados pela misericórdia divina, única via de equilíbrio e paz social.    

À guisa de conclusão, sabemos que a leitura e análise das obras literárias como as de Ariano Suassuna e de Gil Vicente, das artes em geral, são sempre um convite a uma nova viagem rumo a novas descobertas, em que somos levados a (re) leituras várias, dependendo do foco que visualizamos a obra em análise. Portanto,  não temos a pretensão de esgotar, em nosso estudo, as  análises sobre o imaginário, antes queremos compartilhar as nossas reflexões com todos que se interessem pelo assunto, que, por sua complexidade e variedade, é uma fonte inesgotável de possibilidades interpretativas.     

 

 

REFERÊNCIAS

 

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