Cultura
e barbárie: o desenvolvimento de uma relação paradoxal
Faculdade
de Educação/ Mestrado em Educação Brasileira
SOARES, R.L.[1]
(renataleitesoares@uol.com.br)
RESENDE, A. C. A.[2]
(aazeres@uol.com.br)
Palavras-chaves: cultura,
repressão, barbárie.
INTRODUÇÃO
O
tema da cultura é privilegiado na obra de Freud e seus desdobramentos
evidenciam sua complexidade. Os
desenvolvimentos da constituição da cultura, do processo civilizatório, não se
efetivaram de maneira linear e, portanto, a reflexão sobre esses processos são
radicais na obra freudiana. A par
disso, a reflexão acerca das contribuições freudianas tem se dado muitas vezes
ao largo da consideração das reflexões
culturais, desconsiderando a vasta e radical contribuição de Freud , no que
concerne à importância das dimensões
culturais na constituição dos processos
subjetivos individuais e coletivos.
As
implicações dessa limitação se manifestam através da forma como ela é
relegada por alguns que se lançam na compreensão da teoria freudiana, visto que acabam por evidenciar para além de
imprecisões na compreensão da subjetividade, a existência de uma enorme
indefinição quanto ao próprio conceito de cultura e, dessa forma, um
descompasso entre o presente e o passado, entre a vida subjetiva e a
objetividade, entre a sociedade e o indivíduo e, por fim, entre a vida
subjetiva em qualquer forma de sua expressão e a realidade que a constitui.
METODOLOGIA
Para
buscar esse conceito e as implicações de suas limitações, será realizada uma
pesquisa bibliográfica em que se pretende rastrear os textos culturais de
Freud, especificamente; Totem e Tabu (1913), Mais Além do Princípio do Prazer
(1919-1920), Psicologia de Massas e Análise do Eu (19120-1921), O Futuro de uma
Ilusão (1927) e o Mal-Estar na Cultura(1929-1930), além de alguns outros textos
e obras fundamentais no que concerne à questão da cultura neste período que
apreende os fins do século XVIII e meados do XIX.
DISCUSSÃO
Segundo Freud (1929) em seu
livro “O Mal Estar na Cultura”:
“O termo ”cultura” designa a suma das produções e
instituições que distanciam nossa vida da de nossos antecessores animais e que
servem a dois fins: proteger o homem contra a Natureza e regular as relações
dos homens entre si” (p. 3033).
Nessa
definição já aparece implícito a dupla função que a cultura exerce que diz
respeito, ao mesmo tempo, à ambivalência dos desejos humanos e aos meios de
manutenção da própria cultura. Na medida em que a função da cultura é a de
proteger o homem da natureza – e, diga-se de passagem, de sua própria natureza
humana e da natureza que lhe é “externa” -
isso aponta para o fato de que uma vez criada a cultura como forma de sobrevivência e limitação dos homens, se
cria, imediatamente, a necessidade de defender a sua própria criação e,
portanto, e não por acaso, se torna
também função desta mesma cultura a ‘regulação das relações dos homens entre
si”. Por quê haveriam de regular as relações dos homens e dominar sua natureza
se a cultura é uma criação humana e por isso mesmo um desejo humano?
A
cultura se apresenta então, como expressão de um desejo humano que é ambivalente
em sua origem e, portanto, ela é, simultaneamente, única possibilidade de
realização deste desejo e interdição do mesmo em sua necessidade de completude.
O desejo é ambíguo e, enquanto tal, portador de afeto excessivo, pois este não
se confunde com a necessidade, tendo por parâmetro, o fato de que esta encontra
satisfação completa e real em um determinado objeto, satisfação esta, sempre
incompleta e interditada para o desejo. Assim, a cultura se constitui como uma
necessidade humana, como instituições humanas que necessitam ser defendidas de
seus criadores que dela necessitam. Essa relação parece ser uma contradição não
apenas da cultura, mas, no limite, do próprio desejo que se funda nesta
possibilidade da cultura, na medida em que sua inexistência implicaria no
desaparecimento do próprio desejo. Por outro lado, a cultura é expressão da
interdição à sua realização completa o que deixa como reminiscências deste
processo, um desejo interditado, que se está negado, não deixou de existir.
Isso
instaura uma relação permanentemente contraditória no âmbito da cultura, tendo
em vista que esta enquanto manifestação humana é representação de um desejo
humano e também limitação deste enquanto tal, afinal, ainda que o desejo seja
duplo, uma parte dele permaneceu obstacularizado pela cultura como única
possibilidade de existência desse mesmo desejo. A cultura é então, emblema da
possibilidade de realização e também da hostilidade do próprio sujeito e, por
isso mesmo, expressão da humanidade. Essa é a contradição que o conceito
anterior de cultura apresentado por Freud abarca, definindo-a como necessidade
do ser humano de domínio sobre a natureza e ao mesmo tempo como regulação das
relações humanas.
Nessa
recíproca e paradoxal constituição entre sujeito e cultura, entre a
objetividade e a subjetividade, entre o mundo material e o mundo “espiritual”,
Freud aponta um elemento decisivo que até então parecia obscurecido como
elemento fundante da cultura. Este elemento é a repressão que criva a
possibilidade da cultura e faz com que a ontogênese apareça subordinada à
filogênese e, portanto, subordinada à história da espécie, da cultura, do
processo civilizatório.
A
repressão[3],
tal como a cultura é expressão da dualidade da condição humana e instaura ao
mesmo tempo, do ponto de vista do processo civilizatório, a possibilidade da coexistência
entre cultura e sujeito numa relação essencialmente diferente da que se
desenvolvia desde os tempos mais remotos. A repressão parece ser um elemento
decisivo na concepção de cultura na medida em que institui uma concepção
universal da condição humana que não obstrui a realidade cultural em detrimento
do sujeito e, ao mesmo tempo coloca as possibilidades deste sujeito
fundamentalmente atreladas ao desenvolvimento da própria cultura.
Se
a repressão instaura de forma decisiva essa possibilidade de coexistência entre
o sujeito e a cultura, ela também é expressão de um desejo indomado e que tem
em sua origem um elemento que tem que ser obstruído, uma agressividade que foi
contida em nome da própria cultura e, portanto, do próprio sujeito. Esta agressividade
não desapareceu e a repressão é um elemento decisivo neste processo. A cultura
carrega então, na história de seu desenvolvimento, a barbárie como uma
possibilidade contida, mas que permanece viva.na história da humanidade.
CONCLUSÃO
Trata-se,
portanto, de um trabalho que discute as entrelinhas do conceito de cultura
sobre o crivo da repressão, buscando através deste conceito as entrelaçadas
relações que o constituem e que podem desvelar não apenas os caminhos trilhados
pela civilização, mas também as possibilidades que estavam postas neste
paradoxo entre cultura e sujeito e que parecem ter sido obscurecidas
historicamente neste percurso que se “realizou” de forma unilateral, negando a
dupla constituição tanto do sujeito como da cultura. As implicações da
neutralização desse paradoxo são não apenas subjetivas, mas também históricas
e, portanto, recolocam também como possibilidade dessa cultura, a barbárie, que
acompanha a cultura desde sua origem, ainda que de forma latente. Esta parece
ser a fertilidade de percorrer o conceito de cultura em sua relação com a
repressão.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Freud, S. (1929). El malestar em la
cultura. In: Obras Completas, Tomo III, Cap. CLVIII, tercera Edición. Madrid:
Biblioteca Nueva.
FONTE DE FINANCIAMENTO: Capes
[1] Mestranda do programa de Pós-graduação em Educação
Brasileira da Universidade Federal de Goiás
[2] Orientadora do programa de Pós-graduação em Educação
Brasileira da Universidade Federal de Goiás
[3] O termo em
alemão é verdandrung que pode ser traduzido por repressão ou recalque. Mezan (2003) em seu livro “Freud: a trama
dos conceitos” aponta uma preferência
pelo termo repressão utilizando-se da seguinte justificativa: “em português,
“recalque” significa simplesmente o ato de calcar de novo, de pisar aos pés,
enquanto “repressão”, segundo a lição de Aurélio Buarque de Holanda, tem uma
gama de significações muito mais afim ao conteúdo de violência que, em nosso
entender, é a conotação essencial do conceito freudiano, p.XVII).