Exclusão e Representação Social das Crianças/Adolescentes de Rua em Goiânia

Autores: Neves Luiz da Silva e Custódia Selma Sena do Amaral – FCHF – UFG

palavras-chave: Exclusão Social, Meninos de Rua, Representação.

1. Introdução

No presente projeto, conceituaremos sobre o que são “menores de rua”. São meninos e meninas em situação de risco pessoal e social e que enfrentam, e sofrem na “pele” intensos processos excludentes e violentos quotidianamente (“Cidadão 2000”, 1992)[1]. Distingue-se do “menor carente”, que são em geral, assistidos juntamente com suas famílias carentes, também não devemos confundi-lo com menores delinqüentes, que pode ou não ser de rua; muito menos com os “abandonados”, que geralmente o são quando recém nascidas, sendo ou adotadas por alguma família, ou indo para os orfanatos públicos, vivendo sob a tutela do Estado ou de organizações filantrópicas. Distingue-se ainda, do grande grupo de menores trabalhadores informais, cerca de 80% que –, como muitas outras categorias, se encontram em situação de rua, enfrentam e sofrem violência, riscos de acidentes e aliciamentos por traficantes de drogas e para a prostituição infanto-juvenil –, mas que em geral, retornam à noite para o abrigo de suas casas, o afeto de suas famílias e a socialização junto à comunidade. Embora sejam grupos que sofrem altos riscos, muitos estão na “transição” definitiva para a “rua”, muitos dos quais, mantêm os importantíssimos laços com a escola formal.

            Enquanto às crianças de rua, propriamente dito, sofrem uma exacerbação dessa exclusão, bem como, dos processos violentos: violência policial, por gangues, por adultos, por aliciadores etc.. Estas crianças também se encontram completamente afastados da escola, do trabalho e perderam ou estão perdendo completamente os vínculos familiares e com a comunidade de origem. Nesse recorte, em Goiânia, são as crianças assistidas pela Coordenação de Proteção Integral (CPI) do Cidadão 2000, órgão criado com a filosofia de respeitar e cumprir integralmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado em 1990, fruto de movimentos sociais e de mobilização nacional, como a luta do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), fundado em 1985. Alba Zaluar (1992; 1994), em sua pesquisa sobre a violência na cidade do Rio de Janeiro e também em Goiânia, constatou a presença de menores em várias manifestações de violência (como atores e principalmente como vítimas) nessas cidades. Para ela:

                       

A situação de violência e de exclusão são vivenciadas cotidianamente em todas as formas de relações sociais: família, trabalho, escola e outros. Mesmo nas ruas, onde passam a maior parte do tempo, em busca de “bicos” ou à procura de aventura, essas crianças são estigmatizadas e representadas socialmente, como “grupo de risco” (Zaluar, 1992; 1994).

 

            Em 1991, o censo da Secretaria de Estado de Ação Social e Trabalho foi realizado no período de 04/11 a 15/12, dos meninos e meninas de rua, assim definidos:

 

Meninos (as) de rua são crianças e adolescentes de até 18 anos que: a) habitam zonas urbanas; b) têm vínculos familiares débeis, quando os têm; c) têm na rua seu habitat principal, substituindo a família como fator essencial de crescimento e socialização e d) estão expostos a riscos consideráveis e específicos (Sena, 1991).

 

2. Metodologia

Nosso objeto ou fenômeno, que será tratado no projeto em tela, será abordado com base num conjunto de autores, bem como, com seus arcabouços conceituais, teóricos e metodológicos. Vamos tentar articular a metodologia qualitativa, através da observação participante, com técnicas quantitativas, sobretudo na coleta de dados.  Numa perspectiva antropológica e sociológica, serviremos de construções teóricas de Da Matta, como os riquíssimos conceitos de oposição e complementaridade entre “a casa e a rua”. Também serviremos das experiências, técnicas e reflexões sobre o trabalho de campo, através das contribuições de Cardoso de Oliveira (1996) e Gilberto Velho (1997). Os quais trabalham brilhantemente os exercícios do “olhar”, “ouvir” e o “escrever” antropológicos, os três momentos essências que formam o trabalho antropológico, os quais denominou-os de atos cognitivos.   

Falando sobre meninos (as) de rua estamos-nos remetendo o tempo todo às idéias de família, casa, lar, vida, rua, mundo e sociabilidade, em suma, são idéias morais, que revelam nosso modo de “ser” e de sentir a vida em sociedade. Para Da Matta (1991), há uma divisão clara entre dois espaços sociais fundamentais que dividem a vida social brasileira: o mundo da casa e o mundo da rua – onde estão, teoricamente, o trabalho, o movimento, a surpresa e a tentação. A “Rua” também é o espaço do lazer, do sexo, mas sobretudo do movimento, do perigo, em contraste com a calma e a tranqüilidade da “Casa”, do lar, da morada. Nesta temos um sentimento de destino em conjunto e de objetos, relações e valores, as “tradições de família”, a idéia de “honra” e de “vergonha”. A casa compõe uma personalidade coletiva, uma pessoa moral, é um espaço não físico, mas de convivialidade social profunda; aqui todos tem nome e, é como se fosse único no mundo, somos especialíssimos.

Já a rua é o mundo exterior que se mede pela “luta”, pela competição e pelo o anonimato cruel de individualidades e individualismos – um mundo anônimo e no “negro do asfalto” onde ninguém conhece ninguém – essa tenebrosa selva de pedra. A rua, assim como o rio, é o local do “movimento”, movendo sempre num fluxo de pessoas indiferenciadas e desconhecidas que chamamos de “povo” e de “massa”; não por acaso, em casa temos as “pessoas”, e todos lá são “gente”: “nossa gente”. Aqui somos marcados por um sentimento, por um supremo reconhecimento pessoal: uma espécie de supercidadania, que contrasta terrivelmente com a ausência total de reconhecimento que existe na rua.

Assim, se a mulher é da rua, ela deve ser vista e tratada de um modo, são as chamadas “mulheres da vida”, ao contrário da mulher caseira, que é “mulher ou moça de família”; também falamos que comida de rua é ruim ou venenosa, enquanto a “caseira” é boa (ou deve ser) por definição. Até mesmo os objetos e pessoas, como crianças podem (e são mesmo) ser diferentemente interpretados caso sejam da rua ou de casa – aqui temos o indicativo central, necessário para interpretar o peso e a intensidade com que as crianças de rua são, cotidianamente estigmatizadas e discriminadas pela “boa e grande” sociedade.

3. Resultados e Discussões.

É proporcionalmente grande a quantidade de crianças e adolescentes em busca da sobrevivência nas ruas da região metropolitana de Goiânia. Pesquisa realizada no final de 2001[2], revelou a existência de cerca de 2.200 crianças e adolescentes nas ruas de Goiânia e do entorno da capital, compreendido por Senador Canedo, Trindade e Aparecida de Goiânia. Deste total, cerca de 1700 eram do sexo masculino e 500 do sexo feminino. Do montante de 2.200 crianças, aproximadamente 150 eram meninos e meninas vivendo nas ruas, nosso objeto específico e, mais ou menos 50, se encontravam em condições de prostituição ou no “comércio do sexo”, outro grave problema social, que será enfocado em projeto de pesquisa futuro.

Na pesquisa local, ainda não temos dados relativos a cor dessas crianças, mas a nacional nos dá indicativo de mais de 83% dessas crianças serem negras ou descendentes desta etnia (Neto et al., 1993). Esse predomínio de pessoas de cor negra entre as famílias de rua e com meninos e meninas de rua foi corroborado por vários estudos, ressaltando Monteiro Filho (1988), CEAP (1989), NEPI/CBIA (1991) e RIZZINI (1986), achou entre 85% a 90%, para o Rio de Janeiro. O que demonstra que esse fenômeno, não resulta somente da estratificação econômica perversa, mas sim, também da exclusão e marginalização étnico-racial. Além desses fatores centrais, há a mudança na estrutura familiar, ocorrendo a desconstrução dos padrões tradicionais e a reconstrução de novas estruturas, valores e referenciais identitários. Outro grande motivo que se insere e/ou provoca a fuga dessas crianças para as ruas, são os conflitos intrafamiliares: brigas entre pai e mãe, pais e filhos, com os pais espancando com freqüência seus filhos, há ainda a violência sexual doméstica, como estupros – feita por pais, padrastos, tios, avos ou alguém próximo da família. Muitos conflitos transbordam em níveis comunitários, como brigas de gangues e policiais (IBGE, 2000).     

4. Objetivos

Como se trata de projeto, não temos conclusões, mas apenas objetivos, os quais perseguiremos: Buscar compreender os mecanismos e/ou condicionantes de exclusão social de famílias brasileiras em geral e goianas em especial, que provocam a expulsão e/ou fuga de crianças e adolescentes para as ruas, tornando-os, vítimas de um processo perverso de insegurança física, alimentar, emocional, educacional e social.

Tentar entender as novas dinâmicas e estratégias de sobrevivência nesse novo contexto de “liberdade” e aventura, mas também de incertezas, fome, frio e violência etc.. Perceber como elas estão em condições extremamente desfavoráveis e excludentes, afastadas e/ou expulsas da família, escola, moradia[3], trabalho, saúde, segurança e de perspectivas futuras.

Perceber, a ressignificação, o “olhar” desses atores sociais de rua, sobre a sociedade, a rua e imagem que reconstroem de se mesmos. Seus novos signos, códigos e valores; símbolos e representações, a construção de suas novas individualidades, identidades e sociabilidades, da nova coletividade a que pertencem.

5. Referência Bibliográfica

CAMPOS, F. Itami e BERNARDES, Genilda D’Arc. Goiânia: Sociabilidade na Periferia. Goiânia: Ciências Humanas em revista, n.2 (1/2). Jan./dez. 1991. pp. 13-46.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. “O trabalho antropológico: olhar, ouvir e escrever”. Revista de Antropologia. São Paulo: USP. 1996. v. 39, n. 1. pp. 13-37.

DA MATTA, R. A casa & a rua. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 4 ed. 1991b.

NETO, Otávio Costa. et al. Rede Familiar: a reconstrução pela desconstrução. Belo Horizonte: UFMG, 2 ed. 1993.

SENA, Custódia Selma. Mapeamento e contagem de meninos e meninas de rua. Goiânia: Desktop, 1991.

VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: individualismo e cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

ZALUAR, Alba. Cidadãos não vão ao paraíso: juventude e política social. Campinas, SP: Escuta. 1994.          



[1] ‘Sociedade Jovem Cidadão 2000’, órgão criado em 1992, ligado à Prefeitura de Goiânia, que mantém interligada e conveniada com outras instituições estatais, Ongs e empresarias, seus próprios organismos. Em Goiânia, essas crianças de rua são assistidas pela Coordenação de Proteção Integral (CPI) do Cidadão 2000’.

[2] Pela Sociedade Cidadão 2000 – e publicada no Jornal O Popular em 5 de abril de 2002 –, efetivada por 150 técnicos, educadores sociais e conselheiros tutelares sob a coordenação de Custódia Selma Sena, doutora em Antropologia e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e da Universidade Nacional de Brasília (UNB).

[3] Essas crianças, quando não dormem em algum abrigo (casa de apoio), ou no relento das ruas mesmo, criam espaços para repouso e socialização denominados mocós, que em geral são em barracos velhos abandonadas, de baixo de pontes, viadutos, marquises e nas praças da cidade. Esses lugares não os livram de perigos intensos: de aliciadores, violência policial e de grupos de extermino, que voltou a moda, com assassinatos a população de rua.