Título: Revisitando as margens: o erótico na ficção brasileira contemporânea de autoria feminina

Autora: BORGES, L.

Unidade Acadêmica: Faculdade de Letras – Doutorado em Estudos Literários

E-mail: borgeslucianab@hotmail.com; E-mail do orientador: pfonseca@ufg.br

Palavras-chave: Gênero – Literatura Erótica – Autoria Feminina

Fonte financiadora: CAPES

Resumo:

O presente projeto de tese parte de uma questão primordial: O que acontece quando uma escritora decide enveredar-se pelo caminho do erotismo e da pornografia, uma vez que estes são considerados tradicionalmente campos de atuação rigorosamente masculinos, tendo em vista as mulheres ‘inventadas’ que a cultura ocidental patriarcalmente se esmerou em forjar? A abordagem deste tema –literatura erótica de autoria feminina – requer a consideração de alguns aspectos de ordem introdutória no intuito de situar o vínculo entre a crítica literária, os estudos de gênero e autoria feminina. Como o projeto encontra-se ainda em fase incipiente de desenvolvimento, apresento neste resumo algumas formulações iniciais.

Nesse sentido, partirei de dois pontos iniciais: a) a inserção dos estudos de gênero em um panorama mais amplo, campo da discussão sobre a construção da identidade e da diferença, tendo como base os estudos culturais; b) o vínculo inicial da perspectiva de gênero às teorias críticas feministas e as conseqüências desse vínculo para os estudos literários, uma vez que as discussões foram centralizadas na montagem/ desmontagem da categoria mulher – sujeito, escritora, crítica – considerada como construto presente em uma tradição literária androcêntrica.

Posteriormente, discutirei a questão da narrativa erótica escrita por mulheres, de sua inserção no cânone literário e da possibilidade de traçar uma linha comparativa entre os textos selecionados como corpus desta pesquisa: de Clarice Lispector: A Via Crucis do Corpo (1974); de Hilda Hilst: A Obscena Senhora D. (1982), O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’Escárnio. Textos Grotescos (1990) e Cartas de um Sedutor (1991); de Fernanda Young: O Efeito Urano (2001). Tal recorte se justifica por acreditarmos que certos mecanismos de escritura se tornam recorrentes nas referidas obras partir do momento em que as autoras se propõem – por motivos vários – a escrever textos erótico-pornográficos e esta decisão é inserida na própria ficção, por meio de processos metanarrativos.

Os procedimentos metodológicos incluem a leitura da obra-objeto, pesquisa bibliográfica teórica, visita a arquivos e acervos pessoais das escritoras, bem como entrevistas, no caso da escritora que ainda se encontra viva e produzindo sua obra. A partir dessas ações pretendo estabelecer, por método comparativo, os possíveis procedimentos que contribuem para a construção de uma identidade de escritora por meio da proposta ou decisão de se escrever literatura erótico-pornográfica ou obscena.

Segundo Foucault (2001) a partir do momento em que a atividade sexual foi confinada ao casamento, tendo em vista uma lógica de produção que não considerava o desperdício da energia física/ força de trabalho em atividades não monitoradas, a repressão ao sexo se torna mais evidente em relação a períodos anteriores. Nesse processo, a sociedade ocidental – em vez de estabelecer uma ars erotica cuja base seria a transmissão de segredos sobre o sexo e a extração do prazer na própria experiência – instituiu uma scientia sexualis, ou seja, uma maneira quase asséptica e impessoal de teorizar sobre o sexo. A pornografia e o erotismo constituem uma forma de resgatar o sexo da esfera de reclusão a que se encontra inscrita e, se falar de sexo é, por si mesmo, uma transgressão, a escrita erótica das mulheres se configura como ainda mais transgressora: conforme estamos discutindo, tratar-se-ia, neste caso, de deslocar as mulheres do lugar de mero objeto para uma posição de enunciadora do desejo, tanto dela quanto de outrem, construindo discursivamente uma representação sobre o erotismo a partir de um específico lugar de fala. Seguindo esse raciocínio, é conveniente lembrar a posição de Alexandrian (1994) a qual postula que o gênero literário mais adequado à escrita das mulheres seria mesmo o gênero sentimental e estabelece que demarcam os territórios possíveis de atuação feminina na esfera do erótico e do pornográfico. Na mesma linha, em seu tratado sobre o erotismo, Alberoni (1997) apresenta uma orientação de cunho marcadamente ontológico quando diferencia pornografia, – considerada eminentemente masculina – e erotismo (erotismo rosa ou ‘água-com-açúcar’) – eminentemente feminino. De modo análogo, Bataille (1987, p.17) ao estabelecer que a relação erótica se dá numa tentativa de desfazer a descontinuidade do ser individual, afirma que "é essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído".

Tais procedimentos seguem uma linha de raciocínio que essencializa, por meio do que Nicholson (2000) denomina fundacionalismo biológico, determinados aspectos da esfera do erótico e do sensual, a partir do momento em que considera determinadas estruturas de pensamento como dados, como coisas da ‘natureza’ e não como produtos de construções discursivas que servem para criar uma suposta essência para o erotismo masculino ou feminino. O engessamento que confina o texto das mulheres a um tipo único e fixo de escrita – geralmente sentimental e choramingas – está diretamente ligado à construção de uma identidade integral e imutável: a escrita das mulheres estaria fatalmente determinada por uma identidade de mulher. A perspectiva contrária ao essencialismo constitui a aceitação de que a identidade é construída de modo estratégico e posicional (Hall, 2000:108) e exclui a associação desse conceito a algo integral, unificado e essencial.

O reconhecimento de que as categorias masculino/feminino são produto de fatores de ordem cultural e não apenas fisiológica, ou seja, produto de uma cultura de expectativas de gênero (Shapiro, 1981) é de importância fundamental para a compreensão do papel que a crítica feminista assume como crítica da cultura. Segundo Bordo (2000, p.24) é necessário insistir "que a filosofia feminista seja lida como crítica cultural. Mais precisamente insistir para que a ‘teoria do gênero’ seja lida para a crítica cultural que ela oferece" e não considerada um ‘gueto’ dentro da crítica geral. Assim, é possível problematizar as construções de uma identidade de escritora que se configuram nos textos em análise.

Consideremos primeiramente o caso de Clarice: em A Via Crucis do Corpo, a autora se pronuncia em uma Explicação, na qual se justifica, enquanto mãe e escritora de textos sérios, por se dedicar ao tratamento de assunto perigoso: sexo. Tal preocupação revela ainda a presença de amarras sócio-culturais vinculadas a certas expectativas de gênero e trazem a presença contínua do signo da culpa.

No caso da Trilogia Obscena, de Hilda Hilst é inegável que há, nesses textos, aquilo que Susan Sontag (1987) denomina intenção pornográfica. Os textos partem de uma intenção deliberada da autora em produzir textos cujo assunto interessasse ao público leitor que, segundo a própria escritora, sempre havia ignorado sua obra. É colocada também uma possibilidade de ganhar dinheiro, vendendo mais exemplares. No entanto, a escritora admitiria publicamente que o desejo de produzir uma literatura de consumo teve um único resultado: fracasso. No lugar do jogo de culpa e transgressão, encontramos, agora, um explícito ‘soco no estômago’ pois justificativa mercadológica acaba soando como uma falácia bastante irônica, traída pelos procedimentos estéticos de escrita tipicamente presentes na ‘alta literatura’ produzida pela autora.

A última obra selecionada como parte do corpus de análise pertence a uma escritora que ainda não foi, digamos, pelo caráter recente de sua obra, canonizada pela crítica acadêmica. O texto de Fernanda problematiza a relação homoerótica a partir do momento em que esta, mesmo transgredindo certas convenções, ainda se inscreve em uma matriz heterossexual (Butler, 2003). A inserção de uma escritora de obra recente pode ocasionar alguns questionamentos quanto à validade da pesquisa. O fato é que, para nossos propósitos, o estabelecimento do cânone deve ser visto não como algo apenas estético, mas, sim, político e ideológico. Desse modo, a revisão do cânone passa também pela revisão da história literária que tem se orientado por duas linhas básicas: "a sucessão cronológica de guerreiros heróicos" e a "sucessão de escritores brilhantes" (Lemaire,1994, p.58), já que, conforme Hollanda (1994), toda crítica literária de orientação feminista é basicamente revisionista. Fernanda Young faz parte de uma geração recente de escritoras tributárias dos procedimentos tímidos de Clarice e da reverberação transgressora de Hilda. Traçar esta linha, revisitando dissonâncias e confluências, é o objetivo principal deste trabalho.

VI. Referencial Bibliográfico:

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