A PERFORMANCE CONTEMPORÂNEA EM QUARTETO DE FLAUTAS: REFLEXÕES SOBRE DUAS LINHAS DE PERFORMANCE À LUZ DO INDETERMINISMO

ARAÚJO, L* e BARRENECHEA, S.

Programa de Mestrado em Música, EMAC – UFG

larenafranco@hotmail.com

Palavras-chave: performance musical, quarteto de flautas, música no século XX, indeterminismo

Introdução

O quarteto de flautas detém uma posição de destaque na área de performance da Flauta Transversal, por ser uma formação camerística versátil. Além de apresentar um repertório interessante sob o ponto de vista artístico, tem sido amplamente utilizado didaticamente, no trabalho com alunos de variados níveis técnicos.

A produção musical em quarteto de flautas abrange, atualmente, um vasto campo de sonoridades. Desde a década de 50, com o advento da Música Eletrônica, passou-se a explorar novas possibilidades sonoras, com a incorporação crescente da tecnologia à performance. A experimentação tomou parte na performance, por meio da manipulação eletrônica dos sons, dos recursos de gravação - como a superposição de faixas, amplificação e distorção sonoras – e de técnicas expandidas de execução.

Da consulta a gravações, percebe-se que a performance contemporânea em quarteto de flautas tem sido abordada, desde aproximadamente a década de 70, sob duas vertentes principais:

    1. a performance tradicional por quatro flautistas, que opta pela junção de diferentes sonoridades;
    2. a performance por um flautista com auxílio da técnica de gravação por superposição de faixas, que pode apresentar duas sub-vertentes:

2.1) a performance que prima pela homogeneidade sonora;

2.2) a performance que prima por uma estética sonora diferenciada, fazendo uso de recursos obtidos tanto por meios eletrônicos, como por técnicas expandidas de execução.

Propõe-se, refletir a respeito dessas duas linhas de performance, tendo por base a teoria do Indeterminismo (Cage, 1976); (Molino, sd); (Eco, 1991).O Indeterminismo diz respeito ao pensamento filosófico, surgido na década de 50, inspirado nas idéias de John Cage, que apresentou, ao meio musical, conceitos como "acaso", "silêncio", "composição como processo" e "não-intencionalidade" (Santos, 2001). Segundo os teóricos da indeterminação, todo o processo de criação e transmissão da obra musical está permeado pelo acaso, assim como a percepção musical. Não é possível ter total controle sobre a obra musical (determinismo), já que existe uma carência de unidade entre as intenções do compositor, a partitura e a percepção auditiva por parte do ouvinte (Molino, apud Motta, 1997).

Na esfera da performance musical, assinala-se a existência de uma abertura na obra musical, que permite ao performer interpretá-la segundo sua sensibilidade (Eco, 1991). A terminologia grau de indeterminação (Palhares, 2002) é definida como a abertura, em maior ou menor grau, existente na obra musical, para que o performer expresse sua interpretação.

A prática da performance em quarteto de flautas demonstra que, nessa formação, a indeterminação da performance está estreitamente relacionada à diversidade sonora. Pode-se dizer que o grau de indeterminação da performance será tanto maior, quanto maio for a variedade sonora resultante do quarteto.

Objetivos

Tendo em vista o referencial teórico apresentado, a reflexão sobre as duas linhas de performance consideradas será orientada com os objetivos de (1) determinar se o resultado da performance em quarteto de flautas deve ser homogêneo ou diversificado e (2) observar se a performance por um ou mais intérpretes necessariamente implica aumento ou diminuição do grau de indeterminação da performance.

Metodologia

Direcionaremos a reflexão por meio de método analítico-comparativo, através da audição e crítica de exemplos musicais. Como universo de pesquisa, foram selecionados três exemplos musicais: performers de diferentes países, com formação em escolas de flauta diferenciadas. Esses intérpretes adotam uma das linhas de performance abordadas, a saber:

    1. Quarteto de flautas da UFG, Brasil: performance por quatro flautistas;
    2. Gergely Ittzés, Hungria: performance por um flautista em faixas superpostas (sub-vertente 2.1);
    3. Robert Dick, EUA: performance por um flautista em faixas superpostas (sub-vertente 2.2).

As seguintes obras serão discutidas:

  1. Cunha – Sonora I (1990), (4 fls C) – Quarteto de flautas da UFG, 1995
  2. Sári – Farewell to Glenn Gould (4 fls G)
  3. II - Cômodo, come da lontano - Ittzés, 1998

  4. Dick – Times (1991), (fls baixo) – Dick, 1991

Resultados e discussão

A audição dos três exemplos musicais permite estabelecer algumas conexões e classificações pertinentes.

    1. a performance tradicional por quatro flautistas

Da primeira vertente de performance, aqui representada na audição da peça de Cunha, pode-se apreender que apresenta um alto índice de indeterminação. O resultado sonoro difuso, as flutuações rítmicas advindas da variação de pulsação, a ocasional imprecisão na execução do encadeamento das vozes, todas essas características revelam uma performance com alto grau de indeterminação.

2) a performance por um flautista com auxílio da técnica de gravação por superposição de faixas

Da segunda vertente, representada por dois exemplos musicais temos:

2.1) a performance que prima pela homogeneidade sonora

A audição da peça de Sári revela uma performance com baixo índice de indeterminação. O controle da indeterminação é obtido, na interpretação de todas as partes por um só performer, por meio da homogeneidade sonora resultante, a não observância de flutuações rítmicas e o trabalho cuidadoso referente à métrica na superposição de faixas.

2.2) a performance que prima por uma estética sonora diferenciada

A interpretação de Dick, apesar de apresentar como característica a homogeneidade sonora, promovida pela execução por um só intérprete, na verdade não a busca como fim primordial. A proposta é a realização de novas sonoridades, as quais são trazidas à tona, rompendo-se as fronteiras do tradicional. Trata-se, dessa forma, de uma performance com alto grau de indeterminação, apesar de realizada em faixas superpostas.

Conclusão

As propostas de performance dos três exemplos musicais cumprem, cada uma a sua maneira, o objetivo que lhes é comum: transmitir a obra musical. Todas elas o fazem de maneira convincente e profissional, oferecendo ao ouvinte um trabalho artístico de qualidade. Há variação no grau de indeterminação da performance, mas isso não acarreta benefício ou prejuízo imediato à transmissão da obra musical.

A performance por um ou mais intérpretes não necessariamente implica aumento ou diminuição do grau de indeterminação da performance, haja vista o resultado obtido na performance de Robert Dick. É possível realizar uma performance com alto grau de indeterminação em faixas superpostas, assim como é possível aumentar o grau de determinação da performance tradicional por quatro intérpretes. A proposta do intérprete determinará o grau de indeterminação resultante, e seu empenho a tornará real.

Finalmente, o resultado sonoro da performance em quarteto de flautas não precisa ser nem homogêneo, nem diversificado; de fato, ele não será exclusivamente determinado, ou indeterminado. A busca por um equilíbrio entre homogeneidade e diversificação parece ser a opção estética mais viável, de maneira a cumprir com a proposta do intérprete e servir à transmissão da obra musical.

Referências Bibliográficas

CUNHA, Estércio M. Sonora I. Performance do Quarteto de Flautas da UFG. 1995. Goiânia. Gravação em DAT. Auditório da Escola de Música da UFG.

DICK, Robert. Venturi Shadows. CD. O.O Discs, 1991.

ITTZÉS, Gergely. Mill of Time. CD FA-053-2. Fono Records, 1999.

MOTTA, Paulo.Música Eletrônica e Aleatoriedade. In: Plural, site do grupo de Artes Sônicas. Disponível em <http://www.plural.com.br/textos.htm>. Acesso em 06 junho 2004.

PALHARES, Taís H. Música Viva e Música Nova: um estudo comparativo de duas tendências de vanguarda através da análise de uma obra de Cláudio Santoro e uma obra de Gilberto Mendes. Goiânia, 2002. Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música e Artes Cênicas da UFG.

SANTOS, Fátima C. Cage: uma escuta que compõe. Revista Música Hodie, Goiânia, Vol 01, 2001. p. 08-18