INTELIGÊNCIA, MEDIDA E ADAPTAÇÃO: A TEORIA DAS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS

Kellen Cristina Prado da Silva (kellencristinas@hotmail.com)

Orientadora: Dra. Marília Gouvea de Miranda (mgmiranda@uol.com.br)

Programa de Pós-Graduação em Educação – FE/UFG

Palavras-Chave: inteligências múltiplas, psicometria, ciências cognitivas, adaptação

Desde o período de emergência e consolidação da psicologia moderna, no final do século XIX, o conceito de inteligência se constituiu em tema fundamental daquela ciência. Em 1869, Francis Galton (1822-1911), estudioso das formas de medida da capacidade intelectual e precursor dos testes de inteligência, desenvolvia estudos com o objetivo de comprovar a determinação hereditária dessas capacidades. (SCHULTZ e SCHULTZ, 1991)

A idéia de inteligência como atributo individual hereditário, defendida por Galton, se desenvolveu com a possibilidade de se identificar os mais aptos, independentemente de sua origem social. Os ideais de uma sociedade de classes "igualitária", associados à demanda social por escolas nos países capitalistas industrializados, vieram legitimar a ideologia liberal, justificando as diferenças de rendimento e o acesso desigual das crianças à escola. Foi o impulso para que os testes psicológicos começassem a ser largamente aplicados, com força de diagnóstico. Segundo Patto (1999), a nova configuração do capitalismo no final do século XIX, possibilitou uma maior mobilidade social, e a psicologia, através dos resultados dos testes de inteligência, contribuiu para legitimar a visão de que os mais "capazes" obtinham sucesso e ascensão social.

No final do século XX, a emergência de diversas concepções de inteligência que se denominam revolucionárias e inovadoras, embora possuam como característica a incorporação de modelos e conceitos anteriores justifica-se, segundo essas abordagens, pela demanda do mercado por um trabalhador mais adaptado às suas exigências, em um contexto de transformação do processo produtivo. Afirmam ser necessárias novas habilidades – também cognitivas – para o trabalho que se tornou mais flexibilizado. (MIRANDA, 1998)

Nesse sentido, é imprescindível uma discussão acerca das transformações produtivas no capitalismo do final do século XX e de suas vinculações com uma determinada concepção de inteligência, que atenderia às exigências de uma intelectualização do processo produtivo. Os desdobramentos do processo de recomposição do capitalismo mundial, que configurou mudanças na ciência, em um mundo cada vez mais tecnificado e informatizado incidem diretamente sobre a concepção de atividade intelectual, que também passa por modificações.

O debate sobre o conceito de inteligência tem se intensificado desde as últimas décadas do século XX, com o surgimento de novas teorias. Dentre as novas concepções de inteligência, o modelo da teoria das inteligências múltiplas, isto é, a noção de que a inteligência não é mais compreendida como um atributo geral, mas como aptidões específicas que se manifestam em habilidades no desempenho de tarefas, tem se fortalecido como paradigma explicativo da inteligência.

Esta dissertação tem como objetivo apreender a concepção de inteligência presente na Teoria das Inteligências Múltiplas de Howard Gardner. Parte-se do suposto de que as concepções atuais de inteligência não rompem com os grandes paradigmas da inteligência consolidados a partir do final do século XIX, mas ao contrário, os retomam no que lhes é fundamental: a idéia de medida das aptidões e de adaptação, em uma perspectiva biologizante, individual, do funcionamento mental. Trata-se, portanto, de um trabalho teórico, na sua etapa conclusiva, que busca evidenciar nessa concepção de inteligência que agrega as dimensões de adaptação e de medida, a constituição de uma racionalidade instrumentalizada. (HORKHEIMER, 2000)

Acerca da origem da Teoria das Inteligências Múltiplas, Gardner (1994) afirma que suas pesquisas foram feitas devido "à previdência e generosidade de uma fundação", que buscou esclarecer o conceito de potencial humano. O autor se refere aqui à Fundação Bernard van Leer, entidade privada filantrópica, que financiou suas pesquisas e outras atividades integradas no Projeto Zero por 10 anos. O Projeto Zero foi criado em 1967, na Harvard Graduate School of Education, congregando pesquisas em psicologia do desenvolvimento. Atualmente está interligado a outro projeto maior, denominado "Projeto sobre o Potencial Humano", concebido pelo diretor executivo, Willem Welling, e o presidente do conselho diretor da Fundação Bernard van Leer, Oscar van Leer. Em 1979 a fundação solicitou à Harvard Graduate School of Education que avaliasse o estado do conhecimento científico referente ao potencial humano. O trabalho desenvolvido por Gardner no Projeto Zero é uma pesquisa que objetiva subsidiar projetos em educação na primeira infância. A bolsa de 5 anos fornecida pela Fundação Bernard van Leer aos pesquisadores de Harvard, colocava a condição da realização de um "estudo que sintetizasse o que estava estabelecido nas ciências biológicas, sociais e culturais sobre a natureza e realização do potencial humano" (GARDNER, 2000, p.45). "Potencial Humano" é um conceito presente no logotipo da Fundação e com frequência aparece nos textos dos relatórios sobre a reforma educacional americana da década de 80, elaborados pelo National Research Council e a National Comission on Excellence in Education. (http://www.bernardvanleer.org)

Gardner (1994) recorre à psicometria como um dos critérios para afirmar que, da mesma forma que uma de suas vertentes – a teoria de J. P. Guilford - sustenta uma concepção de inteligência apoiada na pluralidade de habilidades medidas separadamente, a teoria das inteligências múltiplas entende que a baixa correlação entre a avaliação de algumas habilidades indicaria uma independência entre esses fatores. Ao afirmar que a inteligência pode ser desenvolvida a partir da "estimulação adequada nos diferentes domínios", e que é preciso ter uma visão da cognição como processo, "de como se procede para resolver um problema"(p.14), Gardner (1994) retoma uma concepção de inteligência processual e adaptativa, referenciada em Piaget.

Gardner (1994) se refere à sua teoria como tendo "propósitos científicos". Esses consistem na expansão dos campos da psicologia cognitiva e do desenvolvimento, que apóiam sua abordagem principalmente em relação aos fundamentos biológicos e evolutivos da cognição. A contribuição da biologia na teoria das inteligências múltiplas ofereceria, segundo o autor, uma fonte científica confiável de dados. Nesse sentido, é a neuropsicologia, tendo seu método referenciado na biologia, que fornece o "tom científico" à abordagem cognitiva de Gardner, na sua intenção de fazer com que dependa do cérebro não apenas a produção do pensamento, mas toda a organização psíquica.

O que Gardner (1994) deixa de destacar é que os fundamentos que apresenta para afirmar o que é a inteligência, não se sustentam em suas pesquisas, mas na revisão de pressupostos de diferentes abordagens teórico-metodológicas, tão distintas e incompatíveis do ponto de vista conceitual, que talvez o autor devesse anunciar "as múltiplas teorias da inteligência" ao invés da "teoria das inteligências múltiplas". Seu procedimento pode ser útil tanto para reafirmar uma concepção de inteligência identificada com uma perspectiva psicométrica, ou uma abordagem processual e adaptativa da cognição, quanto uma visão do funcionamento cognitivo como conseqüência direta do funcionamento das áreas cerebrais específicas.

A retórica de Gardner (1994), que não encontra ressonância em suas pesquisas empíricas, busca a adesão do leitor no plano teórico, o qual é levado a concluir que a revisão bibliográfica feita pelo autor das abordagens anteriores da inteligência – principalmente pelas pesquisas neuropsicológicas – são evidências suficientes para legitimar as conclusões de Gardner e a formação de um corpo de proposições consistentes e coerentes entre si, os quais podem ser utilizados para confirmar o real, denominado pelo autor de "teoria". A concepção de teoria proposta por Gardner (1994) passa pelo princípio de que, como nas ciências naturais, a possibilidade de aplicação é inquestionável.

Nesse sentido, quando se discute uma concepção de psicologia que sustenta essa compreensão de inteligência, está em causa a própria concepção de ciência, de homem e de sociedade. Essa noção de inteligência está em conformidade com o processo de fragmentação da psique, originado na constituição das relações sociais próprias desta sociedade, sendo expressão de uma racionalidade que identifica experiência e teoria, excluindo a possibilidade da contradição em proposições deduzidas da constatação empírica, nas quais o verdadeiro se confirma na realidade imediata. (HORKHEIMER e ADORNO, 1987) Essa mesma racionalidade, que naturaliza a razão e a despoja de qualquer relação com seu conteúdo objetivo, não pode dizer o que a inteligência é, pois essa tarefa pressupõe admitir a existência de uma estrutura fundamental abrangente do ser, uma ordem objetiva inerente à realidade social.

Referências Bibliográficas

HORKHEIMER, M., ADORNO, T. W. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1987.

BERNARD VAN LEER FOUNDATION. http://www.bernardvanleer.org

GARDNER, H. Estruturas da mente: a Teoria das Inteligências Múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

GARDNER, H. Inteligência: um conceito reformulado. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2000.

HORKHEIMER, M. Meios e Fins. In: Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000.

MIRANDA, M. G. Inteligência e Contemporaneidade. Trabalho e Educação – Revista do NETE, ago./dez., n.4, 1998.

PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar – histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

SCHULTZ, D. P., SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. São Paulo: Cultrix, 1991.

 

Apoio: CNPq