REDESCOBRINDO UMA CONTROVÉRSIA ELIZABETANA: AS (RE)LEITURAS DO AMOR EM TRADUÇÕES BRASILEIRAS DOS SONETOS DE SHAKESPEARE

Autora: SILVA, G. D./UFG**

Orientadora: Ofir Bergemann de Aguiar

PALAVRAS-CHAVE: Desconstrução; tradução; Shakespeare; Sonetos.

INTRODUÇÃO

Estudos pós-estruturalistas de linguagem têm buscado redefinir e reavaliar as concepções tradicionais de língua, autoria, leitura e tradução vigentes há séculos no campo da intelectualidade humana, sendo a desconstrução proposta pelo filósofo francês Jacques Derrida o projeto que mais se ocupa da tradução em particular. A desconstrução não intenta destruir ou aniquilar todo o arcabouço intelectual acumulado durante séculos, mas procura tão somente questionar oposições binárias e desvelar certezas antes indiscutíveis. O projeto desconstrutivista de Derrida parte do princípio de que inexistem uma Verdade absoluta e significados estáveis, exteriores ao jogo da linguagem e da ação de indivíduos inseridos na história. Tal projeto consiste em uma nova maneira de encarar textos, um olhar inquisidor em busca daquele "'ponto cego' que o autor nunca viu e nem quis ver, e que o texto procura, na medida do possível, acobertar para que ninguém o veja" (RAJAGOPALAN, 1992, p. 26, grifos do autor). A aplicação dessas novas leituras à atividade de traduzir e à função exercida pelo tradutor apresenta concepções bem mais realistas. Se os significados não são a-temporais e estáveis, mas obedecem a coerções sociohistóricas e culturais, então não podem ser transportados seguramente de uma língua para outra por um sujeito relegado à neutralidade. A tradução constitui, assim, um outro texto, não uma cópia supostamente fiel de uma produção textual pertencente à outra época daquela vivenciada pelo tradutor.

OBJETIVOS

Com vistas a investigar como a perspectiva desconstrutivista contribui para uma nova reflexão em torno da prática tradutória, rumo a uma concepção menos idealizada, formalista e restrita do ofício do tradutor, enfatizei, neste trabalho, a relevância do conceito de diferença, ressaltada pelas pesquisas pós-estruturalistas e captada em traduções de sujeitos díspares. Aqui, o foco reside particularmente na tradução de natureza literária e, para tal, tornou-se necessário selecionar um gênero textual de relativamente curta extensão (com o intuito de delimitar o escopo da pesquisa) e, nele inserido, uma obra de larga divulgação entre tradutores de língua portuguesa. Optei pelo gênero poético e, conseqüentemente, pelos Sonetos (SHAKESPEARE, 1997) do dramaturgo e poeta inglês William Shakespeare (1564-1616), publicados em 1609, devido à intensa repercussão e controvérsia construídas em torno de seus temas polêmicos, como a idealização de um objeto amoroso masculino personificado pelo 'belo jovem' (o que tem levado diversos críticos a atribuirem homossexualidade a Shakespeare) e o relato explícito das relações carnais perpetuadas pelo 'eu'-lírico e a 'dama morena'. O mistério em torno da identidade das figuras centrais dos Sonetos, se retratos biográficos ou meras criações ficcionais, tem apenas acentuado a curiosidade e especulação por parte de leitores e especialistas.

Procurei, então, observar como as traduções dessa renomada obra do poeta inglês refletem as concepções dos tradutores em torno dessa célebre controvérsia elizabetana, fundamentando-me na hipótese de que a natureza polêmica proporcionada pela seqüência poética em questão tenha talvez inibido sua recepção pública no Brasil.

METODOLOGIA

Foram escolhidas para análise quatro traduções referentes aos sonetos 55, 99, 107, 130 e 144; em relação ao número restrito de cinco poemas enfocados, tornou-se necessário delimitá-lo ante a extensa seqüência de 154 sonetos ao todo e a inviabilidade de abrangê-los, ao passo que a motivação por trás da seleção desses sonetos em particular deveu-se aos tópicos e subtemas abordados por Shakespeare no âmbito da obra em pauta. As traduções em pauta são assinadas por Péricles Eugênio da Silva Ramos, Jerônimo de Aquino, Oscar Mendes e Jorge Wanderley – primeiramente publicadas em 1953, 1957, 1969 e 1991, respectivamente –, tendo sido escolhidas por incluírem os cinco poemas reunidos para análise.

Estas quatro traduções, realizadas em momentos históricos diversos, foram comparadas com o intuito de captar as diferentes opções efetuadas pelos tradutores, tanto no âmbito de aspectos lingüísticos (como os níveis morfossintático e semântico) quanto em relação a elementos literários (metrificação e esquemas rímicos).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O tradutor Péricles E. da Silva Ramos efetua escolhas que remetem diretamente à sua filiação estético-literária da Geração de 45, como o emprego do verso alexandrino clássico com rimas, o uso de um vocabulário refinado e de um tom eloqüente que assegura ao todo um caráter remanescente do parnasianismo do século XIX. Teor igualmente rebuscado é perceptível na tradução de Jerônimo de Aquino, norteada de vocábulos de extrema erudição. Aquino, nascido no século XIX, certamente perpassou uma educação de natureza formal e ainda muito vinculada à tradição portuguesa, o que explicaria a presença de itens lexicais próprios da variedade lusitana em seu texto.

A tradução de Oscar Mendes sucede o texto de Aquino em mais de uma década e, mesmo que se caracterize por um vocabulário acessível e sem grandes dificuldades – marcado por um estilo prosaico decorrente do verso dodecassilábico branco –, ela se destaca pela complexidade de sua organização sintática, repleta de volteios e inversões que visam remeter o leitor diretamente ao texto inglês, e não a uma leitura refletora do momento histórico em que se insere.

O texto contemporâneo de Jorge Wanderley, por sua vez, é marcado pela musicalidade trazida pelo decassílabo rimado, fator que constitui motivação central do tradutor para a realização de sua tradução. Ao apresentar uma linguagem atual que deixa transparecer o momento lingüístico e histórico de sua produção, Wanderley (1994, p. 22) aparenta veicular a opinião de que Shakespeare dirigia-se a um público eclético, ao afirmar que este "fazia igualmente acenos ao refinamento mais caprichoso de par com uma linguagem rude e direta, voltada para o popular". Isto corrobora a idéia de que sua intenção era empregar uma variedade lingüística que ampliasse o escopo de leitores brasileiros dos Sonetos, uma meta um pouco divergente da dos outros tradutores em pauta. Wanderley (1994, p. 23) conclui sintomaticamente: "a tradução é um ser permanentemente em curso".

CONCLUSÃO

Em torno de William Shakespeare consolidou-se com o passar dos séculos uma aura de supremacia literária e cultural por parte de críticos, tradutores e leitores em geral que o tornaram um objeto de prazer estético-literário inacessível às grandes massas. Essa suposta nobreza e requinte associados à sua obra dramática e lírica deveriam ser expressos com igual fervor no âmbito das traduções, prolongando o mito de que o público leitor do bardo deveria pertencer necessariamente a uma elite intelectual que possuisse a sensibilidade e a percepção de compreendê-lo. Essa consideração, que alça Shakespeare "acima da história" (MARGOLIES, 1988, p. 51), manifesta apenas os aspectos pertinentes à perscrutação acadêmica, deixando à margem elementos que ponham em xeque a integridade do poeta, como é o caso das controvérsias específicas aos Sonetos; desafiar tal crença significa sumariamente "questionar toda a ideologia" (MARGOLIES, 1988, p. 51) que a fundamenta e a sustenta.

Esta é a tendência geral das traduções brasileiras dos Sonetos aqui analisadas. Mesmo que esta seja uma obra problemática para a preservação da imagem íntegra e imaculada do poeta que a tradição cultural e literária inglesa (e mundial) continua a invocar – ao revelar implicações sexuais que possivelmente apresentam uma faceta homossexual e/ou pederasta de Shakespeare –, os tradutores continuam apresentando aos leitores brasileiros um Shakespeare eminentemente elitizado, provido de uma linguagem formal e arcaica que visa obscurecer convenientemente o fato de que o bardo também era um autor popular.

REFERÊNCIAS

MARGOLIES, David. Teaching the handsaw to fly: Shakespeare as a hegemonic instrument. In: HOLDERNESS, Graham (ed.). The Shakespeare myth. Manchester: Manchester University Press, 1988. p. 42-53.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. A trama do signo: Derrida e a desconstrução de um projeto saussuriano. In: ARROJO, Rosemary (org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas: Pontes, 1992. p. 25-29.

SHAKESPEARE, William. Shakespeare's Sonnets. Ed. Katherine Duncan-Jones. London: Arden Shakespeare, 1997.

WANDERLEY, Jorge. Introdução. In: SHAKESPEARE, William. Sonetos. Trad. Jorge Wanderley. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 9-23.

Fonte de financiamento: CAPES