Música Eletroacústica e Modelagem Ecológica: uma experiência compositiva
FONTENELE, A. L. F.
DE ALMEIDA, A. G.
Universidade Federal de Goiás
Programa de Pós-Graduação da Escola de Música e Artes Cênicas
Endereço eletrônico: alfontenele@uol.com.br
Palavras chaves: música eletroacústica, modelagem ecológica, síntese sonora, paisagem sonora.
O presente trabalho teve como principal objetivo a busca de ferramentas para a manipulação e re-síntese de sonoridades de fontes acústicas naturais no contexto composicional da música eletroacústica de tecnologia digital. Atualmente, não só a criação de timbres, mas também alguns tipos de transformações de sons passaram a ser realizadas através dos métodos de síntese sonora por software.
Apesar da dificuldade em se manipular dados numéricos através de declarações/algoritmos convenientes que resultem em sonoridades interessantes ao contexto musical eletroacústico, alguns compositores vêm produzindo timbres criativos, muitas vezes, fugindo do nível de racionalidade geralmente empregado nesses tipos de rotinas composicionais. A manipulação e/ou re-síntese de sons naturais, realizadas por meio de técnicas de síntese de sinais sonoros, têm se tornado, cada vez mais, presentes nas rotinas composicionais da música eletroacústica de tecnologia digital (Fontenele, 2003).
Nossa hipótese de trabalho concentrou-se na procura de mecanismos técnicos disponibilizados pelos métodos de síntese de sinais sonoros que possibilitassem processos operacionais mais maleáveis. Tais buscas nos proporcionaram caminhos menos convencionais e mais intuitivos no trabalho de manipulação e re-síntese dos timbres naturais utilizados. O surgimento de ferramentas mais flexíveis no trabalho com os sons de fontes acústicas naturais no contexto da música eletroacústica da década de 1990 foi observado pelo compositor Simon Emmerson (1998) como um "refinamento da abordagem da paisagem sonora". Para o autor, esse tipo de comportamento propicia um maior controle do espaço sonoro, considerando, ainda, os fatores de percepção ligados à mente do ouvinte.
O método de modelagem ecológica realiza variações espectrais e temporais nos sons naturais originais através da utilização de técnicas específicas de síntese sonora. Através da utilização de técnicas de síntese granular e de modelos físicos foram desenvolvidos alguns modelos ecológicos que simulam e interferem nas dinâmicas espectrais e temporais de sons que pulam, sons friccionados e de objetos sendo quebrados. Além dos modelos "pular", "quebrar" e "friccionar" os criadores do método de modelagem ecológica, Barry Truax e Damian Keller (1998), desenvolveram dois outros modelos de síntese sonora que criam, através de manipulações nos sons naturais, efeitos de fogo e de água corrente.
Os modelos ecológicos foram adaptados ao contexto estético e espectral dos materiais sonoros empregados na série de peças eletroacústicas compostas durante a parte prática da pesquisa. Na modelagem ecológica são realizadas transformações espectrais através da granulação de pequenos samples pré-estocados e pela inserção de uma freqüência ressonante na textura granular gerada. Tal procedimento é utilizado no modelo do fogo e na aplicação desse modelo nas peças eletroacústicas criadas, tal modelo foi usado de forma diferenciada à medida que foram colocados em jogo pequenas amostras de características diversas. O resultado dessa modificação do modelo do "fogo" gerou um efeito sonoro bem curioso. Tais sons resultantes do processo de síntese granular geraram efeitos denominados de "efeito floresta" e refletiam uma mescla de tipos variados de micro sons. Outro modelo utilizado foi o modelo de "pulos" que simula o mecanismo de propagação de comportamentos sonoros no decorrer do tempo. Tal modelo foi usado e levemente modificado na terceira peça da série "Sementes".
Na fase de implementação dos modelos ecológicos, os parâmetros sonoros são processados por um ou vários instrumentos (arquivo orchestra) interpretados pelo compilador acústico Csound (Vercoe, 1997). Os parâmetros relativos às variações temporais e ao controle dos grãos são gerados de forma randômica pelo programa Cmask (Barterzk, 1997), que automaticamente converte tais dados no formato do arquivo score do Csound.
A condução do trabalho com os materiais sonoros presentes na série de peças eletroacústicas baseou-se na temática "sementes" como forma de se obter diversos tipos de sonoridades derivadas da união de vários micro-sons (das sementes) em texturas sonoras iterativas e granulares. Para Ferraz (1998), esse tipo de tendência na composição prioriza o trabalho molecular do som. Segundo o autor, compositores como Messian e Xenakis: "privilegiam em suas composições a transposição de sensações decorrentes da escuta de fenômenos naturais (...) em ambos encontramos uma composição explosiva com base nos cálculos numéricos, em que o ouvinte será jogado de um nível a outro de repetições e diferenças" (p.93). Considera, ainda, que essa tendência da "composição para o aspecto molecular do som" tem gerado novas perspectivas de criação que ultrapassam os procedimentos de estruturação paramétrica do serialismo integral.
Parte das sonoridades presentes na série de peças Sementes I, II e III foram criadas em movimentos de despejar sementes, pelo quicar de bolinhas de gude em diversos tipos de superfícies, entre outros tipos de efeitos percussivos de frutos de árvores presentes na cidade de Goiânia. Também foram explorados movimentos giratórios de de sementes e bolas de gude em diversos tipos de suportes. Um outro grupo de sons foram derivados de três tipos específicos de vagens que envolvem as sementes. Tais vagens secas foram quebradas, pisadas e friccionadas.
Os materiais sonoros originais das três peças passaram por diversos tipos de manipulação, além das implementadas pelos modelos ecológicos. No processo de gravação e edição dos sons citados acima tentou-se explorar as melhores características dos mecanismos operacionais programas utilizados.
O tipo de discurso adotado baseou-se em critérios estéticos herdados da música concreta, acusmática e do contexto da nova paisagem sonora. Indo além da linha tradicional da paisagem sonora, o abordagem ecológica na música eletroacústica da atualidade procura mecanismos tecnológicos para o tratamento dos sons naturais, mantendo preservadas as suas características originais.
Gostaríamos de abordar um fato que adquiriu importância no processo criativo das peças Sementes I, II e III. Conforme foi detalhado no texto de dissertação do presente trabalho, consideramos que a utilização de sonoridades naturais, presentes de várias formas no ambiente cultural e social do ouvinte, facilite a fruição estética de obras eletroacústicas. As peças compostas os materiais derivados de frutos das árvores do cerrado e de outras regiões do país, revelaram-se como objetos coerentes às nossas expectativas criativas, bem como integrada, mesmo que de forma sutil, ao universo sonoro do ouvinte.
Destaca-se a necessidade de se buscar caminhos compositivos no âmbito da música eletroacústica de tecnologia digital que respondam aos objetivos criativos do compositor. Conforme afirmou Truax (1992), a tecnologia surge como uma ferramenta que irá responder a um problema de ordem estética do compositor. No caso da série de peças eletroacústicas compostas, o método de modelagem ecológica veio ao encontro de uma necessidade de se trabalhar os sons naturais de forma mais coerente, não os distanciando totalmente do universo cotidiano em que eles se encontram.
Salientamos, ainda, a necessidade de que as novas pesquisas na área de síntese sonora aplicada à manipulação e re-síntese de sons naturais sejam documentadas e disponibilizadas a outras leituras por parte de compositores "usuários" dessas novas tecnologias.
Nessa perspectiva de trabalho com sons naturais em peças eletroacústicas, novas pesquisas relacionadas aos aspectos ligados à mente do ouvinte e do compositor podem ser sugeridas, na medida que os sons naturais do cotidiano refletem-se de forma significativa na nossa memória, no contexto social em que vivemos e, principalmente, nas nossas experiências culturais — que são construídas de forma diferenciada em cada indivíduo como reflexo das suas curiosidades, empatias, estudos etc.
Referências Bibliográficas
BARTETZKY, André. CMask: a stochastic event generator for Csound. Disponível em <http://www.kgw.tu-berlin>, 1997.
EMMERSON, Simon.. Aural Landscape: musical space. Organized Sound. Volume 3(2), Cambridge University Press, p.135-140, 1998.
FERRAZ, Silvio. Música e Repetição a diferença na composição contemporânea. São Paulo: EDUC – Editora da PUC, 1998.
FONTENELE, Ana Lúcia. Procedimentos composicionais da Música Eletroacústica no contexto digital. CD-ROM do XIV Congresso da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música), Rio Grande do Sul, p.1358-1361, 2003.
KELLER, Damián; TRUAX, Barry. Ecologically-based Granular Synthesis. Anais da International Computer Music Conference, Ann Arbor, MI: ICMA, 1998. Disponível em <http://www.sfu.ca/~dkeller>. Acesso em 26 de junho de 2003.
TRUAX, Barry. Electroacoustic Music and the Soundscape: The Inner and Outer World. Em J. PAYNTER; T. HOWELL; R. ORTON; P. SEYMOUR. Companion to Contemporary Musical Thought. London, EUA e Canada: Routledge, p.374-398, 1992.
VERCOE, Barry and contributors. The Public Csound Reference Manual. Montréal, Piché, J., Université de Montréal, 1997.
Órgão financiador: CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa)