CIBORGUE: HUMANO ou TRANS - HUMANO

Relação homem-máquina em Neon Genesis Evangellion

Autora: Danielly Amatte Lopes

Programa de pós Graduação: Mestrado em Cultura Visual – FAV

Orientadora: Dra Rosana Horio Monteiro (monter1@uol.com.br)

Palavras – chave: Ciborgue – ficção científica – corpo

Introdução

O desenvolvimento da ciência e da tecnologia tem contribuído, através de intervenções cibernéticas, para a configuração de um novo corpo, um corpo híbrido. Isso tem provocado uma (re)interpretação do próprio conceito de corpo, e, por conseguinte, as representações desse corpo também têm mudado.

O cinema de ficção científica, com seus robôs de alta tecnologia, os conflitos entre homem e máquina, entre ética e progresso, vem incorporando e contribuindo há tempos para a difusão e popularização dessas novas representações do corpo. Quer através de produções originais ou de adaptações literárias, o gênero ficção científica constrói personagens, que, por intermédio da implantação de próteses maquínicas, são transformados em uma sub-espécie da humanidade.

A proposta desse trabalho é justamente investigar essas novas representações do corpo presentes no anime Neon Genesis Evangellion, uma série japonesa de 1995, composta por 26 episódios e 1 longa-metragem, totalizando mais de 10 horas de animação. A história acontece em 2015 na cidade de Tókio-3. Projetada como uma fortaleza mecanizada para a defesa da humanidade, abriga em seu subsolo a sede da NERV, organização secreta com o suporte das Nações Unidas, formada com a finalidade de proteger o planeta de ataques futuros. Nela foram desenvolvidos os Evangelions, criaturas que se configuram num misto de seres biológicos e tecnológicos, controlados por pilotos humanos, que tem a missão de derrotar os anjos enviados para eliminar a humanidade. Esses seres trans-humanos trazem uma nova interpretação de corpo – homem – máquina .

Corpo e desenvolvimento tecnológico: novas interpretações

Corpo, intervenções cibernéticas, corpo híbrido. O desenvolvimento tecnológico dos últimos 50 anos tornaram essa relação, tema de discussões e colocações que envolvem desde total aversão ao meio tecnológico, até adoração da implantação de componentes de natureza maquínica no homem. São visões que se revezam na interpretação do conceito de corpo e de consciência e na nova configuração que essa relação adquire.

Antes acostumado a lidar apenas com a confrontação entre céus e terra, o homem do final do século XX também tem que se confrontar com a idéia de uma evolução possibilitada pela tecnologia. Não se trata mais de esperar por uma intervenção divina que nos torne pessoas melhores. Trata-se de construir com nossas próprias mão essa evolução.

Sobre a evolução da espécie via tecnologia, nos deparamos com alguns pensamentos que guiarão nossas observações sobre as representações contidas no animé Neon Genesis Evangelion. O primeiro vem de Donna Haraway que possibilita um encontro muito especial entre a ficção científica e as ciências biológicas.

Para Haraway, assim como na ficção científica tão cheia de junções entre organismos e máquinas, caminhamos para um estado onde será quase impossível distinguir a separação entre o maquínico e o humano, trazendo o ciborgue do ficcional para o cotidiano. Para a autora, o ciborgue é um tipo de eu – pessoas e coletivo – pós-moderno, um eu desmontado e remontado e, esse (re)montar se constrói através das imagens de corpo e de sujeito que chegam até nós. Venturelli identifica no surgimento dessa hibridação humano-máquina, uma tentativa de se misturar com o campo puro das imagens.

Numa outra linha temos Sterlac e suas concepções de um desenvolvimento pós-evolutivo através da acoplagem de dispositivos protéticos. Para ele o corpo tornou-se obsoleto e ineficiente. Assim, Sterlac não encontra sentido em vermos o corpo como o lugar da psique e sim, como uma estrutura a ser modificada. Não mais sujeito, mas um objeto de projeto.

Um terceiro teórico que aparece aqui afim de amarrar nossa leitura do tema é Derrick de Kerckhove. Reconhecido com um dos "herdeiros" do pensamento de Mcluhan, Kerckhove identifica em nossa realidade psicológica uma dependência com a forma com que nosso ambiente nos afeta. E esse novo ambiente contém também novas necessidade geradas pela aproximação entre o homem e a tecnologia. Para Kerckhove, se somos capazes de integrar dispositivos a nossa identidade, certamente seremos capazes de integrá-los ao nosso corpo, tornando possível a existencial de ciborgues: formas de integração entre o biológico e o tecnológico. Tornando assim cotidiano, um mito pertencente a ficção de alguns anos atrás.

Corpo e ficção: (re)interpretações e (re)presentações

Novas "realidades" levam a uma reconstituição de conceitos e de interpretações de formas simbólicas existentes. Re-interpretando a concepção de corpo, os indivíduos acabam por gerar também novas representações para esse corpo, agora híbrido. São inserções de novos contornos, onde os indivíduos incorporam a suas experiências diárias, novas informações sobre o "vir a ser" da raça humana, num misto de real e fantástico.

O desenvolvimento tecnológico ocorrido na segunda metade do século XX, fez com que esses mundos – real e imaginado – ficassem mais próximos a medida que o caráter antecipatório das obras ficcionais que envolvessem ciências, foi sendo confirmado com a presença de aparatos apresentados por ela a décadas atrás. Num misto de curiosidade e receio, a ficção científica, trazia personagens onde, a melhoria proporcionada pela implantação de próteses maquínicas, os transforma em uma nova sub-espécie dentro da humanidade. Um novo espécie também possuidora de um corpo que precisa ser representado.

Em NGE encontramos um exemplo de representação dessas novas sub-espécies: os EVAs, criaturas cibernéticas, trans-humanas, fruto da intervenção do homem em uma criatura mítica que chega a terra. São organismos vivos com equipamentos cibernéticos implantados, controlados por pilotos humanos, inseridos em seu interior, que os comandam através de conexões neurais.O piloto é algo que está "no interior" dos EVAs e é completamente externo ao mesmo tempo. A única delimitação entre essa dualidade é uma conexão maquínica que determina a dependência.Na verdade os EVAs são seres sem alma própria, manipulados pelo homem, numa necessidade egocêntrica de superar a Deus.

O corpo sagrado, que deve ser protegido de toda e qualquer profanação permanece assim dentro de Evangelion. São novas criaturas desenvolvidas a partir da clonagem de seres não-humanos que se tornam o que, em analogia as colocações de Sterlac, representariam o corpo Oco. Em seus texto, Sterlac coloca que o corpo tornou-se muito vulnerável, incapaz de acompanhar as máquinas que o próprio homem criou. "A estratégia deveria ser a de tornar o corpo oco, endurece-lo e desidratá-lo para fazê-lo mais durável e menos vulnerável"

Um corpo hospedeiro, onde o piloto se coloca enquanto alma e enquanto mente. Seria outra vez um reforço as convenções cartesianas que prevêem um mundo cognitivo separado do subjetivo, dando as pessoas a chance de funcionarem apenas como mente: Razão. O corpo perde o status de invólucro sagrado e se torna mera ferramenta ou objeto, contribuindo para a crise pela qual passa a questão do sujeito dentro da chamada pós-modernidade.

Outro ponto que merece destaque é o que trata a tecnologia como um recipiente, onde o "homem" se insere, com a finalidade de proteger a si mesmo. É novamente a clássica metáfora de herói salvador na armadura brilhante. E é essa metáfora que vai se desfazendo ao longo da série. Enquanto num primeiro momento, o ser biotecnológico se encontra sob o total controle de seus criadores – novamente o homem brincando de deus – o decorrer da história leva à uma automação desse ser, chegando a um momento onde o ser humano é dispensável. Seria "a tecnologia invadindo o corpo", o que segundo Sterlac, se configuraria na evolução, já que permanecer humano não é mais vantagem. Seria o momento em que "tendo sido anteriormente um contêiner, a tecnologia agora se torna um componente do corpo"

Podemos traçar um novo paralelo, agora levando em consideração o público que o animé atinge, questionando as novas necessidades que ele cria. Essa visão turva do ciborgue (que facilmente pode se confundir com os personagens EVAs, pois partem de um mesmo princípio, a hibridação homem-máquina), constrói o que Kerckhove identifica como tecnofetichismo. Fazendo uma alusão ao que McLuhan chamou de "A narcose de Narciso", onde o consumo das novas tecnologias geram uma espécie de obsessão nos usuários, num padrão psicológico de identificação narcísica, Kerckhove aponta entre nós, meros espectadores, uma nova obsessão. A busca pela "ciborguicidade", onde desejamos adquirir essa tecnologia que transcende nossas limitações físicas, tornando nos também pós - humanos.

Veremos então que a lógica tecno-científica, por vezes vista como a salvadora da humanidade, ajudou a criar novas questões sem resposta. Resta a pergunta: será que em alguns anos questões como "para onde e de onde viemos" se misturaram a perguntas de fundo científico, batendo num liquidificador o mítico e o científico? O que sabemos por enquanto, é que o corpo enquanto hospedeiro (da alma ou da mente, você escolhe) está entre as inquietações do homem do século XXI.

Referências Bibliográficas

In.: Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano: Tomaz Tadeu da Silva (org). Belo Horizonte: Autêntica, 2000.